DISCIPULADO ( Filipenses 3:1-16 )
Introdução
A perícope destacada para o estudo deste capítulo se encontra dentro de
uma carta escrita por Paulo à comunidade cristã que está em Filipos, importante
cidade da província romana da Macedônia. Paulo se tornou pregador de um
evento cujos seguidores foram, anteriormente, vítimas de sua perseguição( Fl 3,6; Gl 1,13; 1Cor 15,9). Ele se
define como “servo de Cristo Jesus” e seus destinatários lhe são muito caros( a
carta é mal entendida quando é lida como discurso teológico, apologético, carta de amizade. O
ponto é reconstruir a unidade da comunidade . “Filipenses deve ser lida como uma
composição epistolar e ao mesmo tempo como uma significativa estratégia retórica”)
O pressuposto da abordagem ao texto de Fl 3,1-16 é que a carta aos
Filipenses é um escrito unitário, cuja finalidade é instruir a comunidade sobre o
essencial da vida em Cristo. Para tal fim, Paulo apresenta o exemplo de Cristo (Fl
2,5-11) e sua experiência de gênese para o discipulado (Fl 3,1-16).
Nesta carta ele
agradece seus amigos pela proximidade e ajuda prestada enquanto está na prisão
(Fl 4,10-20).
O ambiente cultural de Paulo foi a diáspora, com os reflexos da cultura
helenística.Influências do helenismo em Paulo:
a) a interpretação
espiritual da circuncisão, em Fl 3,3, “Nós somos a circuncisão, e não os que mutilam sua carne!”;
b) a interpretação ética da circuncisão: é a circuncisão do coração que realmente conta (Rm
2,25ss);
c) a proclamação batismal: “não há mais judeu nem grego”, em Gl 3,28;
d) a declaração
de que nem a circuncisão nem a incircuncisão contam, mas guardar os mandamentos de Deus
(1Cor 7,19);
e) a recapitulação da lei no mandamento do amor (Gl 5,14; Rm 8,13ss);
f) a discussão
sobre o sacrifício e o λογικὴν λατρείαν (Rm 12,1).
Precisa-se admitir que o judaísmo que
precedeu Jesus e Paulo já era um judaísmo helenizado. Tenhamos presente que já eram passados
360 anos da dominação helênica naquela região. Daí falar de uma helenização do cristianismo,
com as descobertas de hoje, é irrelevante.Sua experiência religiosa de base é aquela nas sinagogas entre os gentios. Sua experiência no caminho de Damasco( At 9,1-22; 22,5-16; 26,12-18.) é recontada nesta perícope
com traços que vão além de crônica, dando ao ouvinte-leitor a interpretação em
nível profundo do acontecido, para influenciá-lo de modo a fazer sua própria
experiência com Cristo, nos moldes do essencial apresentado.
O objetivo do estudo exegético é narrar o texto, a partir de dentro, de
maneira a obter uma compreensão em um modo mais profundo, levando em conta
fatores que não é possível ter todos presentes em uma primeira visita.
Esta
narração está em função de que a comunidade de fé, à qual foram destinados os
escritos, possa, de modo novo, escutar a Palavra fundadora por meio das palavras
tecidas no texto.
O critério adotado para a segmentação( unidades sintagmáticas provisórias [...]; grandezas mais fáceis de serem manejadas) foi dividir os períodos em
frases verbais e nominais.
Por que a segmentação?
Porque as palavras falam e
suscitam atitudes. Tudo no texto é elemento de comunicação com o ouvinte-leitor.
Se for verdade que as partes recebem do conjunto seu horizonte de compreensão,
pode-se dizer que o todo do texto é composto pelo belo mosaico das palavras e da
relação das palavras entre si. Sendo assim, segue o texto, sua segmentação e
tradução.
(13 )ἀδελφοί ἐγὼ ἐμαυτὸν οὐ λογίζομαι κατειληφέναι ἓν δέ τὰ μὲν ὀπίσω ἐπιλανθανόμενος τοῖς δὲ ἔμπροσθεν ἐπεκτεινόμενος
(14 )κατὰ σκοπὸν διώκω εἰς τὸ βραβεῖον τῆς ἄνω κλήσεως τοῦ Θεοῦ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ
(13)Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha conquistado; mas tomo a seguinte atitude: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que estão adiante de mim,
(14)Apresso-me em direção ao alvo, a fim de ganhar o prêmio da convocação celestial de Deus em Cristo Jesus
O centro comunicativo da perícope é a experiência de Paulo ( Fl 3,7-
11), o que vem antes serve como preâmbulo e o que segue é uma explicação de
modo a esclarecer aos destinatários as consequências do evento em suas vidas,como gênese para o discipulado. As inúmeras referências que esta perícope faz ao
conjunto da carta demonstram que este capítulo 3 lhe é uma parte integrante tal
como se apresenta.
O início da perícope em 3,1 é muito contestado, o que parece advir de dois
motivos: a expressão λοιπόν, que seria conclusivo, e os três imperativos voltados
aos opositores da comunidade, que indicariam um novo assunto.
Quanto ao primeiro motivo,λοιπόν , em vez de ser traduzido com um
“finalmente” para concluir, ele pode perfeitamente ter a função de retomar a
argumentação para dizer algo destacando-o.
Este é o caso da perícope em estudo.
Vê-se isso confirmado também em outros escritos de Paulo.
Em 1Cor 7,29:[“Eu digo, irmãos: o tempo abreviou-se. então, que
doravante, os que têm mulher vivam como se não tivessem”.
No contexto em que
há a escolha do estado de vida em relação à mulher, a frase “os que têm mulher vivam como se não tivessem” reforça o
argumento, com uma frase “de efeito” sem com isso concluir o raciocínio, até
mesmo abrindo para os versículos que seguem até o fim do capítulo.
Em 2Ts 3,1, λοιπόν marca claramente o início de um novo argumento. No contexto da
perícope de 3,1-16, λοιπόν é mais bem traduzido por “pelo que resta [a ser
dito]”. Deste modo, o v. 1-2 com seus cinco períodos absolutos, introduz os
imperativos que colocam em guarda a comunidade; por sua vez a indicação dos
oponentes e seus valores deixados subentendidos são o preâmbulo da partilha que
Paulo faz refletindo o sentido profundo do que aconteceu com ele para que se
tornasse alguém que corre para alcançar Cristo.
Quanto ao segundo motivo, os imperativos que irrompem em Fl 3,2 têm a
função de introduzir as coisas sobre as quais é sólido (ἀσφαλές) falar, e que não é
custoso (ὀκνηρόν) para Paulo fazê-lo. Ou seja, os imperativos justificam a solene abertura da perícope:
Eis uma visão geral da perícope:
.o v. 1 introduz a perícope;
.os vv. 2-3 introduzem de forma antitética o assunto (eles/nós). Os motivos de confiança na carne
.(4-6) são numerosos, e mesmo superior a que outros poderiam ter; esses motivos, tidos como ganhos tornam-se perda diante da novidade que é o conhecimento de Cristo Jesus
.(7-9). Este conhecimento leva a uma comunhão com o conjunto do mistério de Cristo, que é personalizado pelo crente
.(10-11). O desfecho tende para o futuro
.(12-14). Com os vv. 15-16 chega-se ao repouso da trama
O imperativo de 3,17a: Συμμιμηταί μου γίνεσθε ἀδελφοί marca um novo
início.
Esta nova perícope terá sua conclusão em 4,1.
O texto pinta diante do
ouvinte-leitor dois quadros bem distintos:
1.Os que caminham de acordo com o
modelo (3,17. 20; 4,1)
2.Os inimigos da cruz de Cristo (3,18-19).
O texto se
propõe a afastar a comunidade desse último grupo e aproximá-la daquele primeiro
grupo, do qual Paulo faz parte e anteriormente falou de sua experiência (Fl 3,1-
16).
A ORGANIZAÇÃO DO TEXTO
O texto possui uma organização que é dada pela sua sintaxe, no modo
como os morfemas se relacionam.
Os substantivos dão força conceitual, os verbos
indicam as ações
As preposições vão conduzindo o movimento.
Serão destacados
três focos de organização do texto:
-a alternância pessoal (vós, nós e eu),
-a
retomada lexical
-função das preposições.
1. A perícope se abre com um vocativo, ἀδελφοί acompanhado do pronome
de 1ª pessoa ὑμῖν (1a),e que é retomado no pronome ἡμᾶς(1c e 1d). Os
imperativos do v. 2 dão ao texto um caráter exortativo direto. O v. 3 é regido pelo
pronome ἡμεῖς, deslocando o tom do texto do “eles” para o “nós”, com considerações que trazem para a trama o ouvinte-leitor, sendo ele contemplado.
Do v. 4 ao v. 12 teremos a exclusividade do pronome em 1ª pessoa (ἐγὼ) e
verbos também na primeira pessoa singular.
Nos vv. 13 e 14 se encontra ainda a
regência da primeira pessoa, tendo aparecido o vocativo ἀδελφοί , (13a) que
mantém o caráter direto da narrativa. Em15b reaparece a 1ª pessoa do plural, que
em 15c e 15d dá lugar à 2ª do plural (φρονεῖτε). A conclusão da perícope no
v. 16 é feita com o nós da forma verbal e ἐφθάσαμεν.
A alternância número-pessoal dá ao texto um forte impacto comunicativo,
visto que a carta aos Filipenses é uma carta familiar de amizade. Neste gênero as
falas se misturam entre dar notícias de si, exortar e falar das coisas comuns. Quem
escuta e lê tal texto como seu destinatário, naturalmente se percebe envolvido, é
algo dito por alguém familiar que desperta sentimentos e convites a atitudes; tais
atitudes requeridas são indicadas pelo texto, na sua gramática.
RETOMADA LEXICAL
Nota-se a concentração do léxico e os pronomes a ele referidos,
sobretudo no período em que a primeira pessoa singular é o carro chefe; estamos
diante de uma experiência pessoal com Cristo.
Finalmente, o verbo καταλάβω serve como grampo entre dois períodos
(v. 12 [12d καταλάβω 12e: κατελήμφθην com v. 13 [13b: κατειληφέναι). O v.
12 enfatiza o “já” do ser alcançado e o v. 13 o “ainda não” da necessidade de
correr para alcançar.
FUNÇÃO DA PREPOSIÇÃO
Se os verbos são responsáveis pelo movimento do texto, as preposições
direcionam o movimento, contendo a força dos verbos para produzir energia de
comunicação. A perícope paulina, rica em preposição, apresenta a ideia de uma
força domesticada, na qual a comunicação é clara e o ouvinte-leitor sente as
marcações por meio das preposições.